“HÁ CHEIROS E SABORES QUE NÃO SE ESQUECEM”

UM ESCRITOR IRREVERENTE COM RAÍZES EM VILA CHÃ

Luís Pereira, 43 anos, geólogo, está a tirar o doutoramento em Engenharia Civil em Coimbra e  acaba de lançar um livro com um titulo algo curioso: “Tudo me Fica Bem”, uma colectênea de crónicas do quotidiano, “de um indivíduo que é pai e filho, motard e genuinamente parvo”, revelando uma grande ironia nos seus escritos. Ou não será que a vida também deve ser levada a rir?

Diz não ser escritor “mas um dia gostaria de o ser”, mas dessa forma teria de criar um enredo, um trama cativante, dar profundidade às personagens e isso não está aqui neste livro, mas sim, crónicas, experiências e vivências que qualquer pessoa pode ter no seu quotidiano.

 “É a forma como reajo a essas situações, escrevendo, e já o faço há dez anos, desde que criei uma página no Facebook. Antes tinha um blogue denominado “A Malta da Viga Airada”, diz.

 O misterioso desaparecimento de um par de meias na máquina de lavar roupa foi o início deste ciclo de irreverências literárias. “Escrever foi um gozo, uma paixão e sempre neste registo do sarcasmo, da ironia, do humor”, sublinha, revelando que o título se relaciona com a sua mania de entrar numa loja e experimentar tudo, desde as coisas mais exóticas e com os elogios dos amigos que lhe dizem, `tudo te fica bem`.

  Luís escreveu em exclusivo para “O Tabuense” um texto sobre as suas memórias da escola de Vila Chã ( Ver texto em caixa), a aldeia onde tem raízes familiares.

  “ A minha mãe nasceu num casebre que ainda está de pé na Rua da Fonte Velha. O meu avô nasceu lá e deixou a minha avó com nove filhos. O meu pai é da Ribeira e conheceu a minha mãe numa daquelas festarolas de verão. Em 1969 deram o salto para França, recorrendo a um “passador”. Mais tarde, mudei-me para Oliveira do Hospital. Mas nessa escola em Vila Chã só fiz a primeira classe e parte da segunda. Mas, repito, ficou-me na memória. Lembro-me que a minha primeira professora era a Mimi, que vivia paredes meias com a escola. E há cheiros e sabores que trago comigo: por exemplo, das batatas fritas e ovos estrelados da minha tia que vivia ali perto, das primeiras chuvas de outono e o cheiro da terra molhada, do sabor dos frangos que não tem nada a ver com os que se comem em Coimbra. Também me lembro de me armar em trabalhador rural na quinta do meu pai em Vila Nova de Oliveirinha, onde me entretinha a cavar batatas. Eram rituais que antes reuniam trinta pessoas e agora aí umas sete e que tendem a cair em desuso. Fico triste por saber que nada é eterno”.

 Sobre o tão propalado ostracismo a que tem sido votado o interior e que tem levado ao abandono das terras,  Luís acha que devia haver eleições todos os anos. “É nessas alturas que se vê qualquer coisa a movimentar-se, por exemplo, no IC 6. O que noto é que existe uma grande preocupação com Lisboa, Porto e a faixa litoral e o resto é esquecido, como se não tivéssemos todos o mesmos direitos”.

  E a finalizar um desejo: o de poder apresentar esta obra na Biblioteca João Brandão, em Tábua. Ao fim e ao cabo, é um filho da terra que não renega as suas origens, e até as exalta.

  A obra está disponível no site das Edições Horus, e na Bertand on line.

Texto e fotos: José Leite

GUARDO AS MELHORES RECORDAÇÕES DA ESCOLA PRIMÁRIA. AUTOR: LUÍS PEREIRA

Foi aquela fase da vida que me ensinou tanta, tanta coisa importante e que ficou, para sempre, retida no meu carácter e personalidade.
Foi na escola primária que aprendi a ler e a escrever, como é evidente, mas foi também na escola primária que aprendi a andar à bulha.

Andar à bulha é o termo serrano equivalente à expressão clínica “gladiar-se à bofetada e ao pontapé com os colegas da escola”.

Como na serra somos gente muito pragmática, que opta invariavelmente por cuspir nas mãos em vez de calçar luvas para pegar numa enxada e cavar terra, também eu preferia dizer à minha mãe que andei à bulha em vez de lhe dizer que me andei a gladiar com os meus colegas, até porque é expressão que pode confundir pessoas simples e que podia facilmente culminar num exame minucioso a partes do meu corpo que sempre preferi manter privadas.

Foi também na escola primária que descobri o amor, não o amor que eu sentisse, porque esse descobri-o mais tarde, mas o amor que duas miúdas sentiram por mim, e que as levava a chorar, aos berros, frequentemente, e a medirem-se mutuamente, como dois gatos antes de se pegarem à bulha.

Só para terem noção do quão boa pessoa eu já era, tentei, durante uns dias, manter duas relações amorosas em simultâneo, sem que uma suspeitasse da outra, só para fazer com que essas miúdas se sentissem melhor. Tão novo e tão altruísta, reparem bem.

Por incrível que pareça, essa minha nobre tentativa resultou em mais choros desvairados e, curioso, mais bulha. Nisso e num olhar invejoso por parte do meu pai, que eu não consegui compreender na altura.

Foi também na escola primária que aprendi a cair de árvores abaixo. Parece fácil, porque a gravidade faz, na verdade, a maioria do trabalho, mas cair de uma árvore abaixo tem a sua ciência e a sua técnica.
   A começar pelo timing, até porque não adianta cair se ninguém estiver a ver. Depois, há que sair conscientes e a andar da situação, porque a verdade é que ninguém fica impressionado se batermos com a cabeça num ramo e ficarmos grogues, cá em baixo, durante uns segundos.
Por fim, é também muitíssimo importante cair e não desatar a correr a chorar agarrado a um braço.
    Se for para isso mais vale nem sequer subirem à árvore, foi o que eu aprendi às minhas próprias custas.
   Tenho também que destacar o papel fundamental da escola primária no meu desenvolvimento cívico e religioso. Quando eu e os meus colegas nos esquecíamos de fazer os trabalhos de casa, tínhamos que nos colocar em fila para termos, todos, a oportunidade de observar a mestria com que a professora Teresa manuseava uma régua em madeira que, lembro-me perfeitamente, estalava quando embatia com as palmas das nossas mãos. Aquela mulher era uma autêntica ninja com uma régua nas mãos.   
O Bruce Lee só foi quem foi porque a professora Teresa não quis enveredar por uma carreira no cinema. 
Nunca a vi fazer a espargata ou pontapés rotativos, graças a Deus, porque nunca apreciei ver saiotes, mas aquela senhora a bater com a régua nas minhas mãos parecia que relampejava dos olhos e tudo.
   Eu, gentilmente e de forma galante, cedia o meu lugar aos meus colegas, ficando para último, à espera de um milagre qualquer que me livrasse das reguadas.
   Lá está, o civismo desde cedo na minha vida, e também o triste constatar que os milagres são demasiado raros para nos podermos fiar neles.
  Devo quase tudo à escola primária, é o que é.

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