É um texto de memória sobre a vida e personalidade de Manuel Pereira, mais conhecido por “Teimoso”, pai de Fernando Tavares Pereira e de uma imensa prole de oito filhos, e que nos deixou no passado dia 20 de agosto. O seu funeral para o Cemitério de Midões impressionou pelo número de pessoas pressentes, de todos os quadrantes sociais, que, assim, e por vezes, de uma forma emocionada, quiseram deixar a sua última homenagem a um homem bom, que agregou numerosas amizades.
Deixando expressos votos de condolências a toda a família, publicamos, em seguida, a entrevista que Manuel Pereira nos deu em outubro de 2020 e que constitui um documento inegável da sua irrequieta “teimosia” em tentar criar melhores condições de sustento para os seus familiares, desdobrando-se em múltiplas profissões. Uma tenacidade e resiliência erguidas a pulso e que soube incutir aos filhos. A alma dos beirões faz-se desta cepa!
MANUEL PEREIRA, UMA VIDA DE TRABALHO, DE MUITAS CANSEIRAS, COM UM SENTIDO SOLIDÁRIO PARA COM A FAMÍLIA
“TRABALHAR SÓ FAZ BEM À SAÚDE”
Manuel Pereira, mais conhecido por Manuel Teimoso, desfia a sua memória prodigiosa de 90 anos de existência acabadinhos de comemorar. Uma vida cheia de muito trabalho em diversas latitudes: foi resineiro, metalúrgico, feirante, vendeu frangos e legumes na praça, mestre de lagar, sapateiro, comerciante, guarda-noturno, agricultor, cuidou de ovelhas, andou por Lisboa a distribuir produtos desta região, um verdadeiro homem dos sete ofícios.
A alcunha advém do facto de ter sido proprietário de um café “batizado” com esse nome, depois de deixar o emprego numa bomba de combustível em Midões. Mas talvez se adeque mais a essa sua irrequieta “teimosia” em tentar criar melhores condições de sustento para a família, desdobrando-se nessas múltiplas profissões. Uma tenacidade e resiliência erguidas a pulso e que soube incutir aos filhos.
Oiçamos essa história de um homem que tinha por hábito arregaçar as mangas e fazer-se a vida com denodo num período difícil em Portugal, em que não havia sindicatos, nem Segurança Social eficaz, nem Rendimentos Sociais de Inserção, ou outra espécie de subsídios que alimentam, em muitos casos, essa ociosidade dos dias de hoje.
Recorda que ele e os filhos – o Manuel e o Fernando – mantiveram aberta durante 24 horas essa bomba de combustível em Midões. “Chegávamos a dormir no local de trabalho. E abri aí um café chamado Mil e Um. Em 1971 saí de lá depois de ter ido para tribunal, pois o dono das bombas recusou pagar todas as horas a mais que fizemos. Queria explorar-me. Vim de lá com 35 contos. Nada mau naquele tempo. Lembro-me que um dos meus advogados foi o Dr. José Manuel Sá Carneiro, do Porto, irmão do falecido antigo primeiro-ministro, Sá Carneiro. Comprei um terreno na Curva do Medo, em S. Miguel, onde está agora o Café/Restaurante Midobar, mas continuei a desdobrar-me em muitas atividades. Mais tarde é que mandei fazer o café que lá está. O Manuel Ferrão e o Dr. Costa Júnior ficaram admirados por eu me aventurar a inaugurar um restaurante naquele local, junto àquela curva perigosa. Custou-me 90 contos. Ficou com o nome “Teimoso” e foi inaugurado no dia 25 de abril de 1974, o Dia da Revolução. Eu nem sabia que tinha havido esse golpe militar. Quem me informou foi o homem da distribuição da cerveja Sagres que veio de Coimbra, e lá ficou uma placa alusiva a essa data”.
Manuel Pereira andou na escola, em Touriz, até aos nove anos de idade. Foi um incidente com o professor quando andava na terceira classe – levou 67 palmatoadas por não conseguir conjugar o verbo ter. ”Fugi para casa. Volta e meia, o meu pai recebia postais para eu regressar à escola e eu teimei em não ir. Tinha medo de ser novamente agredido. Então o meu pai disse para eu ir guardar ovelhas. Aos doze anos fui cavar com uma enxada para a Casa do Esporão. Aos catorze, o meu irmão, o Zé, que Deus o tenha, arranjou-me trabalho em Oliveirinha como sapateiro”.
Em 1951 nasceu a primeira filha, numa vasta prole de três filhos e cinco filhas. Cumpriu o serviço militar e chegou a frequentar o curso de cabo furriel no quartel da Graça, Lisboa, onde ficou em segundo lugar. “Recusei-me depois a ir para o Funchal. Um voluntário deu-me 30 contos e eu cedi-lhe o lugar. Fui ter com o sargento Esperança e disse-lhe que podia ficar com o dinheiro, pois o que eu queria era ir para casa. Fui partir calçadas na Vila do Mato, a ganhar 20 escudos e cinco tostões. Trabalhei mais tarde para o Zé Manco e para o Costa outra vez como sapateiro em Tábua.Fui mestre de lagar – cheguei a tirar o curso dessa especialidade – e na Casa do Esporão estive 17 anos, 7 anos em Tojais e 5 em Meda de Mouros a ganhar 5 contos por mês. Tinha ainda a oficina de sapateiro com três empregados. Cheguei a vender frangos e legumes na praça. Ao mesmo tempo, ia levar cestos de encomendas para Lisboa, contendo os mais variados produtos que entregava a porta dos clientes. Batatas, azeite, vinho, isso tudo. Decidi ficar com o negócio em vez de dar dinheiro a ganhar aos outros. Aluguei camionetas e andei pela capital durante quatro anos. O meu Manel ainda me acompanhou, penso que em duas ocasiões. Chegávamos a subir seis andares pela escada de serviço para entregar batatas”.
Foi nessas andanças a carregar grandes volumes que sofreu um acidente e que levou a ficar com uma mazela na coluna para o resto da vida. ”O Dr. Costa colocou-me um colar de gesso em redor do pescoço e assim andei durante sete semanas até ele o tirar. Era só piolhos quando tirei o colar…”, diz. Nada que o impedisse de prosseguir o seu trabalho no Lagar de Meda de Mouros.
Foi padeiro quando estava em Meda de Mouros, nos intervalos vendia comidas e bebidas nas feiras – numa carroça puxada por um pequeno burro chamado “Padre Augusto” – nunca largando as temporadas no lagar. Nessas idas para as feiras, quando tinham lugar em Oliveira do Hospital, chegou a dormir com a mulher em barracões, só para poder chegar mais cedo aos locais de venda. Passou pela Serração Midonense, onde foi guarda-noturno desde as 4 da tarde até à meia-noite, descarregou madeira da firma para Israel. E foi nessa altura que foi para as bombas em Midões e montou o café.
Aos 42 anos tirou o exame da 4ª classe. A oportunidade de fazer negócio – uma característica desta família de empreendedores que seguiu o exemplo do seu patrono – surgiu em S. Gião, quando foi assistir a um jogo de futebol. “Vi lá uns pinheiros marcados. E fiz o negócio. Naquela época foram 140 contos. Disse ao vendedor, o Veloso, que só tinha 70 contos. O meu Fernando chegou-se à frente e pagou o restante”.
Nunca mais parou nesses negócios com madeira. Num só dia, recorda, “fiz dezassete ”, revela. Na sua motorizada com duas velocidades palmilhou esta região das Beiras: S. Gião, Corgas. Torrozelo, chegou a ir para a Serra, lá para os lados de Travancinha. “ Em cada negócio que concretizava ofereciam-me um copito de vinho. Às tantas, andava já maluco e dei conta que me faltavam 50 contos. Decidi que, a partir dessa data, tinha para aí sessenta anos, iria deixar de beber, e assim fiz”, frisa, sorrindo.
Depois de uma “aventura empresarial” mal sucedida num negócio de madeiras em que lhe ficaram a dever 2960 contos, associou-se ao filho, Fernando Tavares Pereira, numa empresa de coberturas metálicas. ”Ele pediu-me para chefiar a lacagem de alumínios em Gouveia, e estive lá cinco anos. Ajudei-o a plantar cinco mil pés de oliveira que arderam todos com o fogo e plantei cerca de 15 hectares de vinhas. Sai aos 78 anos, mas nunca deixei de trabalhar, apesar de a vértebra me doer. Sabe, meu amigo, o trabalho dá saúde, provavelmente foi devido a toda esta atividade que cheguei a esta idade. Mas fiquei satisfeito por ver que os meus filhos não morreram à fome. Mas a quem chamo agora o meu segundo pai é ao meu filho Fernando, que, além de me pagar uma importância mensal, ainda custeia as minhas despesas médicas. Sem ele seria difícil sobreviver com uma reforma de duzentos euros. O Fernando toda a vida foi bondoso. Deus o acompanhe, pois há poucos como ele. E eu ajudo-o sempre que posso. Olhe, anda ali um gajo em Vale de Gaios a roubar-lhe umas extremas. Já disse ao meu neto, o Nuno, que é preciso ir tomar conta da situação enquanto eu posso, pois conheço bem os limites dos nossos terrenos. Deus me dê saúde nas costas como eu tenho de cabeça”.
Manuel Pereira compara esta situação de pandemia com o período em que viveu durante a II Guerra Mundial, em que também havia muitas restrições, fome e miséria em Portugal. “Já dizia o Periquito dos Areais, de Vila Nova de Oliveirinha, uma pessoa do passado que o povo apregoava ter dons de adivinho : Um dia, o Mundo vai ficar cada vez pior, a ver coisas a sobrevoar sem estrada e sem nada….e o Mundo vai acabar com fome, peste e guerra. Eu, com catorze anos, já ouvia isto aos antigos”.
Entrevista: José Leite
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